A Lei 13.979/2020 e a Pandemia do Coronavírus – Por Carmen Boaventura

Carmen Iêda Carneiro Boaventura é Advogada e Consultora Jurídica em Licitações e Contratos Administrativos e nos escreve um texto especial com um panorama da lei e suas decorrências nas licitações.  Na atual conjuntura, diante do cenário de pandemia decorrente do coronavírus, inegável é a variedade de normas publicadas, no sentido de auxiliar no combate ao enfrentamento […]

Criado em 11 abr 20

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Por Carmen Boaventura

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A Lei 13.979/2020 e a Pandemia do Coronavírus – Por Carmen Boaventura

Carmen Iêda Carneiro Boaventura é Advogada e Consultora Jurídica em Licitações e Contratos Administrativos e nos escreve um texto especial com um panorama da lei e suas decorrências nas licitações. 

Na atual conjuntura, diante do cenário de pandemia decorrente do coronavírus, inegável é a variedade de normas publicadas, no sentido de auxiliar no combate ao enfrentamento da emergência de saúde pública, bem como de definir regras para a situação do estado de calamidade.

Antes de adentrar no mérito das questões normativas propriamente ditas, cabe ressaltar a importância do direito fundamental à vida, insculpido na nossa Carta Magna, em seu art. 5º, caput.

Esse direito, instituído como cláusula pétrea, é inviolável, possui amparo constitucional, e está sendo diretamente afetado por uma circunstância imprevisível, que abala, nesse momento, grande parte dos países do mundo inteiro – a disseminação do COVID-19.

O direito à saúde, ao lado do direito à vida, constitui um direito que deve ser resguardado pelo Estado. Na sua perspectiva de direito público, tem a função de proteger a saúde pública como um bem coletivo, voltado para o interesse da coletividade.

Nesse sentido, o Estado exerce a sua função prestativa e protetiva – no primeiro, quando, por exemplo, constrói hospitais e fornece medicamentos; e, na função protetiva, quando proíbe a venda de produtos nocivos à saúde (URBANO, 2010).

Daí surge a necessidade de regulamentação do Estado, em sentido lato, para estabelecer normas de convivência, bem como regras de contratações públicas eficientes, de modo a tentar solucionar os problemas reais, instituindo regras, que no caso sub examine, se prestam a evitar a disseminação, ainda maior, do COVID-19.

E foi nesse cenário, que a União, no exercício da sua competência privativa para legislar sobre normas gerais de licitações e contratos (art. 22, inciso XXII CF), editou a Lei 13.979, publicada no dia 6 de fevereiro de 2020, com medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus; que, frise-se, posteriormente foi alterada pela Medida Provisória 926 de 20 de março do ano corrente, trazendo regras específicas para as contratações públicas.

A priori, a Lei 13.979/2020 – uma lei nacional e, portanto, aplicável a todos os entes federativos, – dispõe logo no seu art. 1º, §1º, como diretriz principal, a proteção da coletividade, que deve ser resguardada diante dessa situação pandêmica, conforme dito alhures.

A lei foi objetiva no sentido de trazer, ab initio, qual a finalidade a que se destina, diante da emergência, definindo regras e situações vinculadas ao enfrentamento da crise de saúde pública.

Dentre outras disposições, analisando o normativo, sob o espectro das contratações públicas, importante destacar a criação de uma nova hipótese de dispensa de licitação.

Cabe aqui uma rápida digressão que nos remete tanto ao diploma constitucional quanto à legislação federal que disciplina a matéria de licitações e contratos.

É cediço que a Constituição Federal em seu art. 37, inciso XXI, traz a obrigatoriedade que a Administração Pública tem de licitar quando desejar adquirir bens ou serviços na seara pública. Porém, trouxe como exceção à regra, as hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação – hipóteses, portanto, de contratação direta, sem a necessidade de realização de procedimento licitatório. E assim, a Lei 8.666/93 – a lei federal de Licitações e Contratos Administrativos – trouxe as disposições relativas à dispensa e inexigibilidade nos artigos 24 e 25, respectivamente.

No bojo do art. 24, inciso IV, especificamente, a Lei 8.666/93 trouxe à baila a hipótese de dispensa de licitação nos casos de emergência ou de calamidade pública, com prazo máximo para conclusão de 180 (cento e oitenta) dias.

Para a caracterização deste cenário, é necessário o atendimento de requisitos: urgência no atendimento emergencial e possibilidade de prejuízo ou comprometimento da segurança das pessoas, serviços ou bens públicos ou particulares (TORRES, 2018).

Volvendo à questão relativa à criação de nova hipótese de dispensa de licitação, pela Lei 13.979/2020, é válido salientar que essa hipótese não se confunde com a dispensa prevista no art. 24, inciso IV da Lei 8666/93.

Aquela, deve ser utilizada: a) tão somente enquanto perdurar o estado de emergência de saúde internacional decorrente do coronavírus, conforme disposição do parágrafo primeiro do art. 4º - limite temporal; e b) especificamente para aquisição de bens, serviços ou insumos relacionados com o enfrentamento da emergência de saúde pública (art. 4º, caput) – limite material

Significa dizer, em outras palavras, que se a Administração Pública precisa adquirir respiradores, ventiladores pulmonares, máscaras e demais insumos voltados ao atendimento de pacientes em situações graves, decorrentes do COVID-19, poderá ser realizada a contratação de empresa apta a fornecer, através do processo de dispensa de licitação, atendendo inclusive, ao princípio da eficiência.

Nesse quesito, importante destacar, não somente os bens e insumos relacionados à área da saúde podem ser submetidos ao processo de dispensa, mas também, aqueles bens que, justificadamente, estiverem relacionados ao enfrentamento da crise do coronavírus, em atendimento do interesse público.

A título meramente exemplificativo convém demonstrar a seguinte situação: um servidor de determinado órgão precisa trabalhar em regime de “home office”, de modo a evitar aglomeração no órgão em que trabalha normalmente, no formato presencial – e para operacionalizar um pregão eletrônico, necessitará de computador ou notebook para realizar sua atividade.

Nesse sentido é que, caberia dispensa de licitação para aquisição de notebook, para viabilizar o “teletrabalho” deste servidor, já que, sem este instrumento, não seria possível realizar pregão eletrônico para aquisição de bens necessários ao atendimento da crise atual (quando não há possibilidade de retirada desses equipamentos das dependências do órgão, mediante Termo de Responsabilidade).

Este também é o entendimento de diversos juristas que atuam na área de licitações e contratos. O “enfrentamento” descrito tanto no art. 1º quanto no art. 4º, caput, da Lei 13.979/2020, deve abarcar não somente bens e insumos relacionados à área da saúde, mas, também, situações que se destinam a manter o pleno funcionamento dos órgãos. Não somente nesse ponto de vista, mas ainda em situações que possam contribuir para esse período de isolamento e proteger a saúde dos agentes públicos (PEDRA,2020).

Nesse cenário, estes agentes estão alterando o formato de trabalho, tentando dar continuidade ao atendimento do serviço público, diante da crise de disseminação do COVID-19.

Outro aspecto significativo relativo a essa nova hipótese de dispensa é que a lei mencionada trouxe em seu artigo 4-B a presunção de atendimento das condições de ocorrência de situação de emergência, como, por exemplo, a necessidade de pronto atendimento da situação de emergência e a existência de risco a segurança de pessoas e bens.

Dessa forma, nos casos de compras de bens e insumos de saúde para o enfrentamento da situação decorrente do coronavírus, há dispensa da comprovação dos requisitos acima mencionados, já que a legislação determinou que eles já foram atendidos. (COSTA. PARECER REFERENCIAL n. 00014/2020/CONJUR-MS/CGU/AGU, 2020).

De qualquer maneira, é necessário que os agentes públicos, quando da adoção da dispensa de licitação fundamentada na Lei 13.979/2020, justifiquem a opção por esse modelo de contratação, no bojo do processo administrativo.

É preciso definir que a escolha foi para o enfrentamento da crise do coronavírus e que exista um nexo de causalidade entre o fato ocorrido e a consequência jurídica objetivada nessa contratação. Ademais, a escolha da dispensa de licitação nesses termos deve ser coerente e proporcional ao tempo disponível para atendimento da demanda (REIS; ALCÂNTARA, 2020).

Assim, importante destacar que a dispensa de licitação estabelecida pela Lei nº 13.979/2020 pode ser utilizada em tempos de crise da pandemia, mas deve haver processo administrativo registrado no órgão, devidamente justificado e motivado pelos agentes públicos.

Quesito interessante trazido pela MP 926/2020 foi a disposição do art. 4º G, onde há previsão de prazos reduzidos para a modalidade de Pregão, seja eletrônico ou presencial.

Três observações necessárias, a saber: a) os prazos dos procedimentos de pregão foram reduzidos pela metade; b) o objeto deve estar relacionado à aquisição de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência de saúde pública; e c) não há distinção ou preferência pela utilização do Pregão, é aplicável tanto no formato presencial, quanto no eletrônico.

A primeira observação pode ser exemplificada quando do atendimento do interstício temporal entre a data da publicação do Edital e o prazo fixado para a apresentação das propostas.

A título exemplificativo, a Lei 10.520/2002 estabelece em seu art. 4º, inciso V, que esse prazo não pode ser inferior a 8 (oito) dias úteis. De acordo com o art.4º G da Lei 13979/2020, esse prazo passa a ser de 4 (quatro) dias úteis. Ademais, o parágrafo primeiro prevê que nos prazos com número ímpar, deve ser arredondado para o número inteiro antecedente.

Relativamente à segunda observação, conforme dito, o objeto deve estar relacionado à aquisição de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência de saúde pública.

Inobstante, não apenas bens de saúde, mas, bens, serviços e insumos que possam servir no enfrentamento da situação de emergência atual, em atendimento do interesse público. E na última observação atinente à utilização do Pregão, o legislador define a questão da redução de prazo para a modalidade, independentemente do seu formato, se eletrônico ou presencial.

Outro aspecto relevante da Lei 13.979/2020 é a previsão trazida pela MP 926/2020, no parágrafo 3º do art. 4º, de que poderá o gestor contratar com empresa declarada inidônea ou com seu direito suspenso de licitar e contratar com a Administração pública, quando for a única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.

O que se deve observar nesse quesito é que o bem jurídico protegido – vida – é mais importante, juridicamente relevante, do que a situação da empresa contratada. Em outros termos, duante o período de coronavírus em que estamos vivendo, mais vale garantir a vida de seres humanos, da coletividade, adquirindo bens relacionados à sobrevivência humana, do que comprovar se a empresa pode ou não contratar com o Poder Público.

Importante reforçar que a Medida Provisória 926/2020 trouxe alterações à Lei 13.979/2020 no sentido de flexibilizar as normas já existentes que regulam as licitações e contratos no Brasil. Sabemos que tanto a Lei 8.666/93 quanto a Lei 10.520/2002 – que dispõe sobre regras atinentes à modalidade de Pregão – são normas complexas, repletas de regras burocráticas e que não poderiam ser aplicáveis no momento de emergência da pandemia.

Dessa maneira, a Medida Provisória foi implementada com o objetivo de dar maior celeridade aos processos de aquisição visando maior benefício ao alcance e atendimento do interesse público, que no atual momento, busca resguardar a saúde pública.

Um exemplo de flexibilização de normas é o art. 4º F da Lei 13.979/2020, incluído pela MP 926/2020, que trouxe a possibilidade de, quando houver restrição de fornecedores, o agente público poderá dispensar a apresentação de documentos de regularidade fiscal e trabalhista e um ou mais requisitos de habilitação.

Este destaque ocorreu justamente por que a Lei 8.666/93 estabelece, em seus artigos 27 a 31, uma série documentos que as empresas devem apresentar para participar de um processo licitatório. Esse dispositivo veio então com o intuito de flexibilizar essa exigência, de modo a acelerar o processo de aquisição.

O artigo supracitado destaca que, a hipótese de dispensa de apresentação de documentação pode ser feita, desde que haja restrição de fornecedores.

Tal situação ocorre se não houver no mercado empresas que possam fornecer determinado bem ou prestar serviço necessário ao atendimento do interesse público atual – o atendimento da saúde da coletividade, diante do COVID-19. Nesse caso há possibilidade de aplicação do art. 4º F.

Imperioso dizer que esse dispositivo trouxe duas exceções: a regularidade perante a Seguridade Social e a declaração relativa à proibição do trabalho noturno a menores, disposto no art. 7º, inciso XXXIII da Constituição Federal.

Significa demonstrar que, apesar da dispensa de uma gama de documentos conforme descrito acima, de acordo com o art.4º F, estes documentos retro devem ser apresentados quando da participação nos certames.

Cumpre ressaltar ainda que, para atendimento do art. 4º F, o agente público deve cumprir dois requisitos importantes: a) o caráter excepcional da medida, por ser um momento de crise pandêmica temporária, e b) mediante justificativa, que deve estar presente nos procedimentos administrativos de contratações. Atendidos os requisitos acima, pode então o agente público valer-se da aplicação desse dispositivo.

Frise-se que, já existe entendimento doutrinário (OLIVEIRA; PÉRCIO; TORRES, 2020) considerando a aplicação supletiva da Lei nº 8.666 de 1993: todos os documentos da habilitação podem ser dispensados, independentemente de restrição de mercado, nos casos de compra para pronta entrega.

Assim, o gestor público poderá dispensar não somente a documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista e os demais requisitos da habilitação, mas também os documentos referentes à regularidade com a Seguridade Social e à declaração de obediência ao inciso XXXIII do art. 7º da nossa Carta Magna.

Saliente-se, por oportuno, conforme doutrina (idem), que as decisões dos agentes públicos devem ser no sentido da oportunidade e conveniência da Administração Pública (mérito administrativo), buscando sempre o alcance do interesse público – nesse momento, a saúde coletiva.

A Lei 13.979/2020 continua com uma série de disposições concernentes ao enfrentamento da crise da pandemia do COVID-19, todas no sentido de trazer maior celeridade aos procedimentos licitatórios, evitando o processo burocrático presente, principalmente na Lei 8.666/93.

O momento atual, de crise, jamais vivenciado, nos traz uma tarefa no sentido de contratar o mais rápido possível, deixando de lado o formalismo excessivo e tutelando os direitos fundamentais do ser humano, que é o direito à vida e à saúde, sem, no entanto, permitir situações ilegais e permeadas de abusos.

Premente é, portanto, a necessidade de mudança de mentalidade, admitindo a flexibilização das normas, como instrumento de inovação, evitando procedimentos burocráticos, que se oponham aos princípios da celeridade e do interesse público.

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